Dia 26/03/2020. Começo esse texto apresentando o contexto que estamos vivendo, a pandemia do novo coronavírus, que certamente ameaça a forma como nós humanos temos vivido na Terra, e abre a possibilidade de repensarmos nosso modo de vida. Mudanças profundas se avizinham e se tivermos a sabedoria de não perdermos essa oportunidade, poderemos viver de uma forma melhor e mais saudável em nosso planeta. Escrevo essa consideração porque o texto a seguir faz parte e é o último de uma série de 04 textos que escrevi, a partir de muitas reflexões, às vezes em grupo, às vezes em dupla, às vezes comigo mesma, ao longo de 07 meses. Pode ser que algumas reflexões “ficaram para trás “, mas acredito que o principal do mesmo é ainda contemporâneo. A história humana dirá…

(4) A práxis educativa: aprendendo com Paulo Freire, Edgar Morin, Alícia Fernández,  Antônio Nóvoa… e outros

Eu não espero pelo dia em que todos os homens concordem

Apenas sei de diversas harmonias possíveis sem juízo final

Alguma coisa está fora da ordem

Fora da nova ordem mundial… Caetano Veloso

Ser professor não é apenas lidar com o conhecimento, é lidar com o conhecimento em situações de relação humana. Antônio Nóvoa 

“Sou um ser humano, nada do humano me é indiferente”. Autor africano desconhecido 

  Uma pergunta tem ecoado por tempos antigos e, mais do que nunca, nesses tempos de mudanças profundas se faz presente: Quem educará os educadores?

Muitos estudiosos do campo da educação, tem oferecido reflexões sobre esse enorme desafio. Assim, o filósofo francês Edgar Morin nos diz: “Na verdade, será por meio de uma multiplicação de experiências-piloto que poderá nascer a reforma da educação, reforma particularmente difícil de introduzir, pois nenhuma lei seria suficiente para implantá-la. Será ela, no entanto, que conduzirá à criação de um tipo de mente capaz de enfrentar os problemas fundamentais e globais e de religá-los ao concreto.”(1) Ainda, Morin: “É necessário que se auto-eduquem e eduquem escutando as necessidades que o século exige, das quais os estudantes são portadores.” (2)

  E, Alicia Fernández, importante psicopedagoga argentina, nos convoca a refletir: “Os espaços de ‘formação docente’ devem abarcar toda a pessoa: sua afetividade, sua imaginação, suas fantasias, suas inibições, quer dizer, sua subjetividade. Devem oferecer oportunidades para que cada ensinante possa ressignificar sua modalidade de aprendizagem, ampliar sua capacidade de atenção e experienciar a alegria de ser autor. Se o professor atende sua própria capacidade pensante, põe em movimento seus saberes e desenvolve sua capacidade atencional, potencializando, por sua vez, essas oportunidades em seus alunos, nutrindo assim, o espaço compartilhado de que todos se nutrem. Sabemos que este é um desafio difícil ante a multideterminação dos problemas, a solidão que muitas vezes enfrentam os professores e os complexos contextos socioescolares. As necessárias mudanças dependem de fatores ( materiais e simbólicos) que os docentes não podem sozinhos, modificar, mas importantes experiências constatam que sempre é possível interpelar os contextos e mudar as próprias modalidades de atenção, abrindo, assim brechas pequenas, porém potentes, no instituído.” (3)

  Para além da pergunta e suas reflexões, Paulo Freire, o mais importante educador brasileiro da contemporaneidade, nos deixou um legado fundamental para compreendermos e mudar as relações que se desenvolvem no espaço-tempo da escola. Para ele a práxis educativa: ação-reflexão-ação deve ser incorporada ao como educar, compreendendo o professor e o aluno enquanto seres inacabados e abertos ao inusitado, ou seja, o ato de ensinar e aprender é uma obra aberta a ser criada nas relações entre seres humanos, muito longe de nossa educação bancária e antiquada.

  Pensando com esses autores e tendo como referências estas reflexões, e o texto de Antônio Nóvoa (4), que trás a seguinte pergunta: Como é que uma pessoa aprende a ser, a sentir, a agir, a conhecer e a intervir como professor? E também, levando em consideração as seguintes questões abaixo, desenvolvemos uma compreensão destes conhecimentos para estruturar um caminho de atuação, como um “espaço-tempo entre” no Instituto Ecos na Educação junto aos professores, a saber:

  • um primeiro “rascunho” de uma metodologia a ser pensada, realizando algumas práticas para trilhar um caminho de construção de uma comunidade de aprendizagem;           
  • a partir dos questionamentos que nos fizemos diante da seguinte afirmação: “A cisão cartesiana entre a natureza e a cultura é a base da educação moderna e constitui-se em um dos principais entraves para a promoção de uma educação ambiental realmente profícua.” Mauro Grün (5), para que dando consequência a esta afirmação, tenhamos o  entendimento de que toda educação é ambiental, por exclusão ou inclusão do mundo natural como seu objeto de estudo, conhecimento e atuação; 
  • por sofrermos de uma ‘doença’, qual seja, a superespecialização do conhecimento, nos permitimos uma releitura da pergunta de Nóvoa, integrando-a no contexto atual em que a relação  da cultura humana e a natureza dá mostras de um esgarçamento importante;
  • por compreendermos e buscar desenvolver o conceito  de lugar como um “espaço-tempo entre”, que o espaço físico do Instituto possibilita e o tempo presente exige e,  por ter papel relevante para criarmos uma alternativa de pensamento diante da complexa realidade da educação atual, percebemos que o espaço físico do Instituto Ecos na Educação, se caracteriza por ser um “lugar entre”  duas importantes bacias hidrográficas do Brasil, a do Rio Paraná e do Rio São Francisco.  Lugar de nascentes  e fluir das águas que irão abastecer e nutrir o centro-oeste, o nordeste o  e o sul do país. Essa vocação natural do lugar onde estamos localizados, um lugar-entre, nos permitiu, também, refletir que podemos ser uma casa comum, um lugar de diálogo. Este lugar deve ter um caráter híbrido, de ligação, de vínculo entre distintas realidades, buscando uma fertilização mútua. Um lugar de entrelaçamentos na busca de convergências e colaboração, desenvolvendo as potencialidades  do ser humano integral. Um lugar de encontro onde produz-se uma terceira realidade, com novos sentidos. E, em colaboração, valorizando os conhecimentos e as experiências de todos.  Trata-se de compreender os desafios do Conhecimento do nosso tempo, do Conhecimento como ciência e como cultura, em toda a sua riqueza e complexidade. 

– diante dessas ponderações e na busca por desenvolver uma comunidade de aprendizagem com estas características, pegamos emprestado de Barenco (6) a  compreensão de uma Epistemologia dos Nexos, para criarmos outros nexos, ou seja, pensar uma realidade complexa como a de uma instituição escola, na segunda década do século XXI, demanda novas categorias de análise para dar conta das mudanças profundas que se fazem necessárias. A saber, uma “Epistemologia dos Nexos é um princípio epistemológico que está comprometido com a proposição de um diálogo recíproco entre múltiplos saberes, pensares e fazeres, e com a legitimidade e dignidade dos povos, culturas e experiências que os enunciam. Não se refere apenas a conexões e nexos ambientais e socioambientalistas, mas também existenciais”.(6)

 E nessa busca de compreensão de uma contribuição para uma nova forma e visão de lidar com a formação dos profissionais da educação, vamos às perguntas:

  – COMO APRENDER A SER PROFESSOR? Partimos de uma teoria desenvolvida por Daniel Goleman e Peter Senge (7) de que desafio da humanidade está centrado em compreender que nós humanos temos que desenvolver um conjunto de habilidades como um foco triplo: – foco interno: em nós mesmos (subjetividade); – no outro (inter-relações): nos outros humanos; – foco externo: contexto ( com o mundo).

 Explicando melhor, o foco interno é a busca de nos conectar com nosso senso de propósito, nossas aspirações mais profundas, compreendendo porque nos sentimos de determinada maneira e o que fazer em relação a esses sentimentos e construir uma vida significativa; o foco no outro é a construção da empatia, de ser capaz de compreender a realidade alheia e se relacionar com ela da perspectiva do outro, não apenas da própria que é a chave para a construção de relacionamentos eficazes e conectados, mas em desenvolver a capacidade de trabalhar juntos e desenvolver a compaixão ; e o foco externo é compreensão do mundo mais amplo, o modo como os sistemas interagem e criam redes de interdependência, seja essa interação dentro da família ou organização, seja no mundo como um todo. Para buscar essa compreensão precisamos entender uma visão sistêmica da vida, e construir uma gestão da complexidade. Resumindo, desenvolver a aprendizagem emocional, a aprendizagem social e a consciência sistêmica.

  Avançando nessa compreensão, achamos que duas perguntas devem estar unidas: – COMO APRENDER A SENTIR COMO PROFESSOR? E, COMO APRENDER A CONHECER COMO PROFESSOR? Essa opção se justifica para começarmos a juntar o que foi separado, ao longo do tempo no desenvolvimento da ciência humana: razão para um lado e emoção para outro. Temos vivido essa dualidade que tem turvado nossa percepção, nossa compreensão e nossas tomadas de decisões. Podemos e devemos compreender razão e emoção, como aquele exercício de figura e fundo, ambos pertencentes ao mesmo desenho, mas ora vemos a figura, ora vemos o fundo, nos permitindo compreender que não é possível separar pensamentos, sensações, sentimentos, emoções presentes em nosso corpo e por muito tempo ignorado por nós.

  Juntar o sentido das duas perguntas, sentir e conhecer – como um único pensamento é fundamental nessa elaboração e, para tanto, apresentamos algumas considerações de David Bohn, em seu livro O Pensamento como Sistema (8): “Isso faz parte de um processo generalizado. Estou tentando dizer que o pensamento nunca é apenas pensamento, é também um estado corporal, as sensações , os nervos. Seja lá o que for que esteja acontecendo na parte intelectual acaba sendo conectado com o restante. Flui tão rápido que você não consegue mantê-lo em um único lugar. Um pensamento de um certo tipo gerará tanto prazer quanto a dor – ou, pelo menos, uma memória de um desses sentimentos. … Leva entre um ou dois segundos para que os impulsos nervosos cheguem no plexo solar, onde poderá sentir a dor. E você não nota que o que você está sentindo no corpo foi estimulado pelo seu pensamento, então você diz: “ Eu sinto um medo na boca do meu estômago, ou “O meu coração está partido”, ou algo desse tipo. … Estou tentando transmitir essa imagem de que esse é um processo único e indivisível”. Continuando com David Bohn: “… falamos que isso é um sistema: os pensamentos, o corpo, as emoções, assim como, as outras pessoas, tudo faz parte é um sistema. E quando fazemos perguntas intelectuais, elas podem afetar as partes não-intelectuais e vice-versa – os outros elementos afetam o intelecto”. 

   E, ainda: “… O processo de  pensamento é neurofisiológico, assim como o intelectual e o emocional. Possui elementos físicos e químicos. Pesquisadores médicos têm demonstrado isso quando fazem várias ressonâncias magnéticas do cérebro. Toda vez que você pensa, a distribuição sanguínea se altera para todo lado, causando todo tipo de mudanças internas; há também as ondas elétricas cerebrais que podem ser medidas. Dessa forma, o pensamento se apresenta, no mínimo, como uma certa base nesse processo neurofisiológico, nunca separado dele.” 

    Como nos diz, poeticamente, Mia Couto: “Ensinar a ler é sempre ensinar a transpor o imediato. É ensinar a escolher entre sentimentos visíveis e invisíveis. É ensinar a pensar no sentido original da palavra “pensar” que significa “curar” ou “tratar” um ferimento. Temos de repensar o mundo no sentido terapêutico de o salvar das doenças pelas quais padece.”

  Continuando nessa direção, a de buscar a integração do pensamento, mais duas perguntas podem ser feitas juntas, desenvolvendo uma integração do pensamento: – COMO APRENDER A AGIR COMO PROFESSOR? COMO APRENDER A INTERVIR COMO PROFESSOR?

Nestas duas perguntas que envolvem  ações em um contexto, sendo o agir uma ação a partir do que a pessoa compreende do contexto e o intervir aquilo que o contexto demanda da pessoa, fazemos as seguintes considerações:

  • um professor atua sempre num quadro de incerteza e imprevisibilidade; são tempos de grandes incertezas e de profundas mudanças na educação. A fronteira entre a escola e a sociedade poderá diluir-se e terá de ser substituída por um trabalho conjunto, comum, no espaço público da educação.
  • A escola foi e ainda é um espaço de confiança para os pais. Apesar da violência interna e externa que algumas escolas públicas são submetidas cotidianamente e, muitas vezes, explorada pela mídia gerando um imaginário do medo e insegurança nas famílias, os pais ainda confiam nessa instituição social deixando seus filhos lá, enquanto vão trabalhar.
  • Para confiar e desenvolver a potência do agir é preciso ter um tato pedagógico, que significa conhecer as partes, seus encontros e ações e interações umas sobre as outras;  exercitar um conhecimento das relações entre as partes, sua composição e decomposição;  desenvolver um conhecimento intuitivo, que atinge a essência que se expressa nas relações.
  • Discernimento: a capacidade de julgar e de decidir no dia a dia profissional. Não sabemos tudo, não temos todos os dados, mas temos que decidir. É a capacidade de integrar uma experiência refletida, que não pertence apenas ao indivíduo, mas ao coletivo profissional e, dá-lhe um sentido pedagógico.
  • Segundo Nóvoa, a escola pública tem sido um lugar importante para a construção da democracia. O conceito de Comunidade, nas línguas românicas se traduz, essencialmente, por uma ideia de grupo com uma identidade própria. Em língua inglesa, há uma outra mais importante: aquilo que fazemos em comum, independentemente das nossas pertenças. E, ainda que Hannah Arendt (1958) diz que a liberdade funda-se numa ação que busca o interesse comum, a criação de uma realidade compartilhada. Nesse sentido, a liberdade e a construção da democracia são os pilares de uma intervenção social comprometida com um espaço público de discussão, de colaboração, e de decisão, num tempo em que as sociedades vão adquirindo uma cada vez maior consciência das suas realidades educativas.

   Nesse sentido,  temos o grande desafio de construir esse “espaço-tempo entre”, no Instituto Ecos na Educação, que nos permitirá criar uma incubadora de possibilidades de atuação  junto aos professores enquanto um ser humano integral, comprometido com o outro e com o contexto em que se vive. E, ainda, contribuindo na busca de alternativas diante de uma crise de paradigmas e de civilização que estamos vivendo.

   Para finalizar estas reflexões, trazemos um chamado ético de Maria Cristina d’Arce (9): “…É uma leitura inquietante que integra continuamente o interior e o exterior, o visível e o invisível, exigindo que nossa consciência vá se ampliando a cada nova reflexão, até que possamos concretamente, e com toda a lucidez, perceber que somos fontes das quais um futuro diferente pode começar a surgir. E, então fica quase impossível escapar da certeza, e da tristeza que a acompanha, de que fomos também as fontes criadoras dessa realidade individual, organizacional e social que aí está. … E poderemos, quem sabe, fazer as escolhas que já não temos mais o direito de não fazer.

(1) e (2) Morin, E. Meu Caminho.

(3) Fernández, A. A Atenção Aprisionada, pág. 118

(4) Nóvoa, A. Texto: Firmar a profissão como professor, afirmar a profissão docente.

(5) Barenco, M.C.M. Uma Educação Ambiental como Estética da Existência e Epistemologia dos Nexos: a experiência socioeducativa do Projeto Florescer. (Tese de Doutorado, UFRJ). Pág 20

(6) Barenco, M.C.M. Idem. Pág 274.

(7) Goleman, D. and Senge, P. O foco triplo.

(8) Bohn, D. O pensamento como sistema. Pág 45, 48 e 49.

(9) Senge, P. at all. Presença.Pág 12.