João é desatento…

João está desatento…

Uma criança, por não prestar atenção, escreveu ‘cabeu’ em lugar de coube.O professor lhe ordena escrever 100 vezes “ não se diz ‘cabeu’ , mas sim coube”. A criança realiza a tarefa escolar com a maior atenção e dedicação. Ao entregá-la para o professor este lhe pergunta: – Por que escreveste 99 vezes “ não se diz  ‘cabeu’, mas sim coube” e não as 100 vezes como te mandei? O aluno timidamente responde: – Perdão, professor, é que não cabeu na folha. Trecho extraído do livro A Atenção Aprisionada, de Alicia Fernández

 

Temos algumas questões no título e na piada aqui apresentadas que iremos explorar no texto. A primeira diz respeito ao ser e estar: João é desatento… João está desatento…  o verbo ser denota características inerentes à pessoa, a mesma já nasceu assim. Por exemplo,  a pessoa é loira ou morena é uma característica inata. O verbo estar denota uma situação transitória, temporária, que pode permanecer ou não. 

Atualmente, tem-se a compreensão que possuímos um código genético e, por exemplo, até a altura da pessoa pode ser diferente do que está inscrito no código genético, vai depender da alimentação,     Ada região  ( incidência de sol) que a pessoa vive, dos traumas emocionais que ela viverá ou não. 

Outro aspecto que queremos ressaltar é que, estamos vivemos num contexto de muita violência ( quer seja violência física, quer seja violência verbal, de disputas e extremos), que alguns teóricos chamam de ambiente tóxico, por isso vamos dar como exemplo a questão da agressão e agressividade.  Comportamentos agressivos podem ou não ser desencadeados dependendo da situação e das relações que a pessoa estabelece. E agressão é diferente de agressividade. Agressão é uma ação ou reação violenta, enquanto agressividade é uma pulsão necessária ao aprender, ao se movimentar em direção a um desejo. E assim, tanto a agressão como a agressividade, do nosso ponto de vista, a pessoa está agressiva e não é agressiva, porque vai depender do contexto, da história pessoal, das relações que essa pessoa estabelece e com quem estabelece ( relação entre adultos, entre crianças, entre adulto e uma criança).

Vamos, então, a nossa questão, se João é desatento… significa que ele nasceu assim, é uma característica dele e ele precisa ser tratado para modificar esse problema. Identificamos um problema no João.  João não cresceu o tanto que poderia para a idade que ele tem, identificamos mais um problema no João.  Vamos, então ao médico e ele irá ser tratado com Ritalina para a desatenção e com cálcio para os ossos crescerem. E João teve também, catapora, João é cataporense ou João está com catapora e precisa ser cuidado e medicado? Até em algumas doenças físicas, a medicação usada é mais suave, porque João não é cataporense, ele está com catapora! Então porque tratar com um remédio que é psicoestimulante uma criança que está desatenta e não é desatenta?

Temos algumas hipóteses: 

  •   nós adultos, andamos muitos desatentos, ocupados com a busca do sustento da família; andamos muito desatentos, ficando no celular por horas, não percebendo as demandas das crianças. As crianças aprendem na família por identificação, reproduzem os comportamentos dos pais, se você prestar atenção verá um papai e uma mamãe em miniatura na sua casa. Mas, alguém pode argumentar: antigamente, a mãe também não brincava com os filhos, ela trabalhava dia e noite em casa para dar conta dos afazeres domésticos. E é verdade! Acontece que as crianças brincavam entre si, brincavam na rua, subiam em árvores, tinham brincadeiras que permitiam muitos ensinamentos dos meninos e meninas mais velhos com os mais novos! Não significa que essa realidade antiga não gerasse problemas, mas eles eram em pouca quantidade e em menores extensão. Não se trata de saudosismos, mas de perceber que o que se perdeu nessa caminhada, foram os espaços das brincadeiras de crianças, a liberdade de aprender de forma descontraída, de aprender com a natureza e na natureza. As crianças estão solitárias e em companhia da TV, do computador e do celular. Máquinas como espelho! Nós, humanos precisamos do outro para aprender, para nos relacionar, para nos afetar (trocar afetos).
  • as mudanças tecnológicas que estamos vivendo, alterou as relações com o tempo e com o espaço na vida de todo o mundo. A instantaneidade das informações impactam fortemente nossa mente e nossa capacidade de processar informações, em especial das crianças que o cérebro está mais velozmente criando conexões neurais. Esse “desajuste” entre como os adultos elaboram e como as crianças estão se desenvolvendo, faz com que não consigamos perceber como as crianças estão diferentes e acabamos as caracterizando como: – essa criança tem problema, ela é desatenta!
  • Nós adultos, muitas vezes, por dificuldades em reconhecer nossos problemas e dificuldades, colocamos a culpa no outro: o problema é do outro, o problema não é meu e assim eu não preciso fazer um movimento para mudar, é o outro o problema! Não nos responsabilizando por nossas posturas e atitudes com relação às crianças e jovens.
  • No contexto da escola, os adultos professores vêm os meninos desatentos, os meninos apáticos, desinteressados. Esses meninos têm problemas! Rapidamente identificamos: essas crianças de hoje! São complicadas, tem problemas! Também os pais não estão nem aí com eles!( responsabilizamos sempre o outro). Vamos chamar os especialistas, para tratar dessas crianças, porque nós professores não sabemos o que acontece com eles! 
  • Na escola, vamos deixando também de olhar para o que acontece com eles, o que não modificamos na escola diante do que o mundo mudou? O que na minha vida de professor mudou e que eu não percebi, não tomei consciência, penso com a cabeça do passado? Uso os mesmos recursos didáticos de 10 anos atrás, enquanto a criança que chega na minha sala é completamente diferente daquela de 10 anos atrás?
  • Será que elas veem com problemas que a escola tem que resolver, ou é a escola que está com problemas nas suas relações com o conhecimento a ser transmitido e nas relações com as crianças? Precisamos nos desassossegar, precisamos estudar, precisamos coletivamente ajudar uns aos outros para chegar a uma melhor compreensão do papel da escola hoje para parar de responsabilizar as crianças com “problemas” e assumir nossa responsabilidade de adultos em cuidar e educar as crianças. Elas não são o problema, nós adultos somos o problema e precisamos nos cuidar diante dos desafios desse mundo em mudanças!
  • Cuidar dos adultos professores significa para nós, criarmos espaços de estudos e reflexão coletivas para que todos possam compreender o que é necessário mudar diante de um mundo em mudanças. O que deve permanecer em nossa prática pedagógica e o que necessita ser modificado. 
  • Por fim, acreditamos que  nossas crianças e adolescentes possuem o VIGOR e nós professores, no trabalho de construção do processo de ensino/aprendizagem precisamos do RIGOR da autoridade (não do autoritarismo que leva a arbitrariedade) do adulto, porque pensamos que o rigor é a rede que o trapezista precisa para fazer as piruetas  no ar. Piruetas da criatividade, da espontaneidade, da alegria de aprender. E, nós professores precisamos recuperar o vigor para acreditar que o rigor é uma responsabilidade do adulto.